segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O Anjo

 Há criaturas cujo destino é se conhecerem
Onde quer que estejam, aonde quer que
se dirijam, um dia elas se encontram
- Claudie Gallay
  
  Kauan havia desaparecido numa tarde de compras em Copacabana, e desde então a mineira Glauce não tinha razões para viver, exceto sair para as ruas desconhecidas do Rio de Janeiro todos os dias, os dias inteiros, procurando pela sua criança. Sete meses já haviam se passado desde o incidente e o pedaço roubado de seu coração ainda não tinha sido recolocado em seu lugar. E ela já estava perdendo as esperanças de que um dia o encontraria para encaixá-lo novamente ali.
  A foto no Facebook já fora compartilhada duas mil, setecentos e trinta e quatro vezes, camisas haviam sido confeccionadas, cartazes, e nada do menino. Dó, era o que as pessoas sentiam da mãe desesperada, que só sabia suplicar e dizer "pelo amor de Deus".
  Glauce parara de comer, de trabalhar, e andava recusando qualquer tipo de diversão. Não digo que estava em depressão, pois quem sofre desse mal não tem a energia que ela tinha ao procurar o filho único.
  Mas para tudo há um caminho, e nem o melhor escritor do mundo sabe costurar as tramas tão bem quanto o destino. 
  Glauce sentiu uma mão tocando o seu ombro.
  - Quer ajuda? - ele perguntou.
  Seus olhos brilharam ao ver o homem. Deviam se conhecer de vidas passadas ou qualquer coisa assim, pois a paixão foi repentina, e em meio a todo aquele desespero, uma chama inesperada surgiu em seu coração. Ele tinha olhos negros como dois besouros miúdos.
  - Você viu meu filho, moço? Pelo amor de Deus, vê se você se lembra de ter achado um garotinho que nem esse na rua, moço!
  - Não vi seu filho, não tenho notícia alguma dele, mas te desejo boa sorte.
  Silêncio.
  - Eu me compadeci da senhora - continuou ele. - Mas não posso fazer nada além de te desejar boa sorte.
  - Obrigada - respondeu ela, e já ia se afastando quando ele tocou novamente o seu ombro e perguntou:
  - Quer um sorvete?
  - Não, eu quero achar o meu filho!
  - Desculpa a sinceridade, mas deixar de se alimentar não vai ajudar em nada.
  Ela fez uma expressão estranha, como quem quer dizer que está ofendido.
  - É verdade - disse ele. - Você não pode deixar de viver por causa disso.
  Ela ofendeu-se ainda mais, e foi embora sem dizer mais nada.
  Ele tirou um papel do bolso, escreveu seu número de telefone, correu atrás dela e colocou-o em sua mão delicada.
  - Se mudar de ideia - o sorriso dele era frio e astuto -, pode me ligar a qualquer hora do dia ou da noite.
  Ela olhou para o papel, depois para ele, e então foi embora.
  No caminho, além de ficar gritando pelo seu filho, fez, mesmo que involuntariamente, o que não fazia havia um bom tempo: observar as pessoas adultas nas ruas, deixando de lado as crianças por alguns minutos.
  As mulheres bem vestidas, madames de Copacabana, bonitas, vaidosas, aproveitando a praia, a vida. Acompanhadas por maridos, namorados ou pretendentes.
  E ela suja, acabada, magérrima, o rosto semelhante a uma caveira.
  Chegou no apartamento, deitou-se no sofá, chorou... E ligou para o homem.
  - Alô - disse ele, o sorriso perceptível pelo tom de voz.
  - Oi, sou eu, a Glauce.
  - Ah, sim, a do filho desaparecido, não é mesmo?
  A frieza dele era instigante e atraente.
  - Eu mesma.
  - Me encontra na Praia da Barra, Posto 5.
  Ele não pediu por favor. Ele não entonou a voz interrogativamente. Era uma ordem.
  Ela desligou.
  Depois de meses de sofrimento e tristeza, estava novamente sentindo o gosto de viver, aquela sensação boa da aventura amorosa!
  Tomou um banho rápido, vestiu uma roupa básica, e foi para o Posto 5 da Barra. 
  Chegando lá, avistou o homem que conhecera mais cedo, com a mesma roupa, o mesmo sorriso astuto e os mesmos olhos de besouros miúdos.
  - Olá - disse ela.
  Ele ficou calado. Simplesmente pegou a mão de Glauce e conduziu-a até o Ponto de Ônibus. Ela não sabia o que ele ia fazer com ela, mas estava adorando aquele suspense. E não se importava muito se ele fosse um maníaco que quisesse matá-la: ela já não tinha razões para querer sobreviver. Conhecer aquele homem e fazer as suas vontades era a prova de que estava desistindo de encontrar seu filho, nada mais.
  De alguma forma, ela havia perdido a vontade de lutar. Não queria mais viver. 
  Entraram no ônibus. Sentaram-se lado a lado. Então ela reparou que nem sabia seu nome.
  - Qual é a sua graça? - perguntou.
  - Meu nome? - ele deu aquele sorriso astuto. - Fábio.
  Ela piscou.  
  Glauce era uma mulher religiosa. Frequentava o culto todo sábado de manhã. 
  A voz do pastor invadiu sua cabeça:
  "Deus é terno e confiável, enquanto o adversário é astuto e enganador".
  Astuto.
  "Astuto".
  Ela entrou na casa escura do misterioso Fábio.
  - Fique à vontade - disse ele e, vendo que ela esperava que ele entrasse primeiro, acrescentou: - primeiro as damas!
  Meio hesitante, ela adentrou a sala iluminada pela lâmpada incandescente que pendia do teto descascado. Pisou no tapete quadrilátero e marrom.
  Sentiu o cheiro de mofo.
  Ouviu passos atrás de si. Mas não passos normais, e sim ferozes. Como se Fábio houvesse ido embora e um lobo tivesse entrado em seu lugar. 
  Ela respirou fundo, fechou os olhos, reabriu-os e começou a correr em direção a cozinha. Ele correu atrás.
  Fábio esbarrou a mão nela, jogando-a contra a geladeira. Ela se recompôs rapidamente e continuou a correr. Tropeçou numa vassoura caída e caiu sobre duas velas acesas. A dor da queimadura foi árdua, e permitiu que Fábio tivesse tempo para pegá-la com força pelo braço e levá-la para a cozinha.
  Ela começou a gritar. Rasgar suas cordas vocais naquele berro de quem está prestes a morrer.
  A voz dele foi mais grossa e mais alta ainda quando ele disse:
  - É O SEU FILHO QUE VOCÊ QUER?
  Ele levantou o tapete e abriu um alçapão.
  - TÁ AÍ O SEU FILHO!
  Então empurrou-a para o buraco escuro.
  Ela caiu lá embaixo com um baque surdo, fazendo com que uma criança começasse a chorar.
  - KAUAN! - ela gritou.
  Foi abraçar o filho raquítico, e as lágrimas dele misturaram-se com as dela.
  - Nós vamos sair daqui, meu filho - prometeu ela. - Mamãe vai tirar você daqui.
  Mas ele não tinha forças para falar, então só retribuiu o abraço com todo o amor do mundo.
   Ela começou a subir as escadas como um animal quadrúpede, usando os pés e as mãos.
  Lá para o décimo degrau havia uma faca, que ela pegou e usou para abrir o alçapão. Kauan, com dificuldade, conseguiu segui-la. 
  Fábio estava lá em cima, sentado numa poltrona, tomando chá e assistindo televisão.
  Frio.
  Astuto.
  Atroz, ela soltou um grito, levantou a faca e foi na direção dele.
  Ele virou-se para trás e olhou-a nos olhos. Um olhar suplicante, implorando pela vida.
  Matar alguém não era tão fácil assim.
  Ela chorou como nunca antes quando terminou o trabalho. Ofegante, olhou para trás e viu seu filho olhando para ela, assustado e chorando sem fazer barulho.
  Kauan havia testemunhado sua mãe cometendo um assassinato.
  "Eu sou uma assassina" ela pensou, "meu filho viu que eu sou uma assassina".
  Estavam salvos, mas nada seria igual. Kauan ficaria traumatizado para sempre, e ela levaria a culpa de ter matado um ser humano para o túmulo.
  - Sai daqui - ela disse ao filho. - SAI DAQUI, AGORA! SAI CORRENDO!
  Assustado, ele obedeceu.
  - NÃO OLHE PARA TRÁS - ela gritou.
  E só depois de ver que seu filho já estava bem longe, correndo pela cidade até achar uma casa segura onde pudesse viver, que Glauce virou a ponta da faca para o seu próprio corpo sem pensar duas vezes.
  Uma música triste começou a soar em sua cabeça. Aquele toque de violão... Nostalgia de sua vida que não voltaria mais.
  A luz do anjo era cegante. Ele não precisou perguntar o que ela queria. Já sabia. Já estava escrito há milênios.
  Então ele pegou a mulher pela mão e a levou ao campo florido. Cavou a terra. Ela foi encolhendo, encolhendo...
  O anjo plantou a semente Glauce na terra negra.
  E Kauan, já com seus vinte anos, passava ali todos os dias caminhando para o trabalho.
  Sentia uma atração estranha por aquela árvore, como se ela o protegesse.
  E não resistia a subir em seus galhos para colher uma seriguela.
  

Um comentário: